As ruínas da antiga capital do Reino do Luar jaziam adormecidas sob o céu violáceo. Restos de torres antes grandiosas agora não passavam de esqueletos de pedra. O chão rachado revelava marcas de magia tão antiga quanto o próprio mundo — vestígios da última Batalha do Véu. O ar ali era pesado, denso com a energia residual das forças colossais que haviam se enfrentado. E mesmo entre a destruição, havia algo... vivo.
Ethan e Ireth surgiram na borda do que outrora fora a praça central. O portal dimensional que os trouxera se fechou com um leve sussurro, como se o próprio espaço estivesse aliviado por não precisar mais sustentar aquele poder. Ethan permaneceu parado por alguns segundos, seus olhos dourados analisando os fluxos ao redor. Seu corpo humano já não seguia mais os limites normais da carne e do tempo — era como se ele fosse um cristal consciente, moldado pela energia do Eco e pela vontade do próprio mundo.
— Estamos perto do primeiro ponto de convergência. — disse ele, os olhos estreitando-se enquanto observava uma trilha de partículas prateadas no ar. — Aqui foi onde o Eco se manifestou de forma mais caótica. A entidade que surgiu dessa fragmentação... ela não se lembra de quem era. Não tem propósito. E é isso que a torna perigosa.
Ireth caminhou ao lado dele com a espada presa às costas, olhos atentos a qualquer movimento entre as ruínas. Desde que Ethan se fundira com o Eco, ela sabia que ele podia sentir distorções a quilômetros de distância, mas mesmo assim não se permitia baixar a guarda. As entidades nascidas dos fragmentos do Véu eram imprevisíveis. Algumas haviam adotado formas benignas, como guardiões silenciosos de zonas feridas da realidade; outras, porém, haviam enlouquecido, consumidas pela ausência de propósito, atacando qualquer coisa viva que se aproximasse.
— Você consegue sentir o que ela quer? — perguntou Ireth, sua voz mais suave agora, quase reverente.
— Dor. Confusão. — respondeu Ethan. — Mas também... desejo. Como se estivesse esperando algo — ou alguém — para guiá-la.
Eles seguiram adiante por entre as pedras, e quanto mais se aproximavam do centro do antigo castelo real, mais o mundo parecia torcido. O tempo não fluía da mesma forma ali. O céu se dobrava como uma pintura molhada, e sombras se arrastavam sem ter dono. As árvores que haviam crescido entre os escombros sussurravam canções em línguas esquecidas, e a própria luz parecia hesitante, como se tivesse medo de tocar o chão.
Ao entrarem no salão principal do castelo destruído, foram recebidos por um rugido. Um som primal, mas estranhamente humano. No centro da sala flutuava uma criatura de forma instável. Metade humana, metade névoa prateada, com olhos negros como abismos e chifres formados por cristal retorcido. Seu corpo pulsava com energia viva, e a cada batida, ondas de distorção varriam o salão como se fossem explosões silenciosas.
Ireth instintivamente sacou sua espada. Ethan levantou uma mão, indicando que não atacassem ainda.
— Ela se lembra. — disse ele. — Em algum nível, ela sabe que éramos parte da mesma essência. Mas está confusa, presa entre o desejo de se reconectar e o medo da aniquilação.
A entidade emitiu um som que era ao mesmo tempo um grito e um lamento. Um trovão se formou nos céus distorcidos, e a criatura avançou com a velocidade de um relâmpago, mirando Ireth com garras de energia instável.
Mas Ethan se interpôs, um campo de luz dourada explodindo à sua frente. A criatura foi repelida, mas não machucada.
— Não estamos aqui para destruir você. — Ethan disse, alto, sua voz ecoando não apenas no ar, mas na própria estrutura da realidade.
A entidade hesitou. Sua forma vacilou. Era como se houvesse dois seres lutando dentro dela — um faminto por destruição, outro desesperado por reconexão.
Ireth abaixou a espada e deu um passo à frente.
— Você lembra dele, não lembra? — ela disse, com a voz firme. — Ethan. O Elo. Ele não é seu inimigo. Ele é parte de você. Como você é parte dele.
A entidade tremeu, e por um momento, sua forma tornou-se quase completamente humana — uma mulher de cabelos longos, prateados, com olhos brilhando como luas gêmeas. Ela olhou para Ethan, e lágrimas caíram de seus olhos, evaporando antes de tocarem o chão.
— "Estou... perdida." — disse ela, numa voz sussurrante, fraca, mas cheia de emoção.
Ethan se aproximou, estendendo a mão. Pela primeira vez desde sua ascensão, sua forma brilhou menos. Ele estava se permitindo ser vulnerável — permitir que o humano dentro dele falasse.
— Não mais. Você está voltando para casa.
A entidade estendeu a mão e tocou a dele.
O impacto foi instantâneo. Uma onda de luz explodiu do ponto de contato, e por um segundo, todo o castelo desapareceu. Tudo o que existia era um campo de energia branca, onde apenas Ethan, Ireth e a entidade estavam presentes. Dentro desse espaço, eles podiam ver fragmentos de memória — batalhas, decisões erradas, gritos, esperança, perdas — tudo o que havia sido esquecido quando o Véu foi corrompido.
A entidade se ajoelhou, chorando. Ethan colocou a mão em sua cabeça.
— Você é um Eco. E todo Eco pode encontrar equilíbrio. Mas você precisa querer.
Ela assentiu. E num instante, foi absorvida de volta ao núcleo da realidade. A luz se dissipou, revelando o castelo restaurado — ou melhor, uma projeção do que ele fora. A primeira energia havia sido reintegrada. O primeiro ponto de convergência, restaurado.
Ireth olhava tudo em silêncio. Era como ver uma alma se curar diante de seus olhos.
— Quantos mais faltam? — ela perguntou.
Ethan olhou para o céu.
— Seis. Cada um mais difícil. Cada um mais corrompido.
Ela assentiu, já se preparando mentalmente. Mas antes que pudessem partir, uma voz ecoou da entrada do salão.
— Vocês estão mexendo com forças que deveriam permanecer enterradas.
Ambos se viraram.
De pé entre os pilares partidos estava um homem encapuzado, alto, com olhos vermelhos como brasas. Sua aura era opressiva, distorcida — não era uma entidade do Véu, mas também não era um mortal comum. Em sua mão, uma lâmina feita de trevas puras tremeluzia como um espelho quebrado.
— Quem é você? — Ethan perguntou, olhos semicerrados.
O homem retirou o capuz. Seu rosto era jovem, mas seus olhos carregavam eras de conhecimento proibido.
— Eu sou Zareth. E vim impedir que tragam de volta o que deveria permanecer em silêncio.
Ireth franziu o cenho.
— Por quê? O mundo precisa dessas energias para sobreviver.
Zareth sorriu, um sorriso frio.
— E vocês acham que reconstruir o mundo como ele era é o caminho certo? Vocês se esquecem... foi exatamente esse mundo que causou a queda. Talvez o caos seja necessário. Talvez estejamos melhor... sem o Véu.
Ethan deu um passo à frente.
— Você não quer reconstruir. Você quer controlar. E isso eu não posso permitir.
Zareth ergueu a espada. A atmosfera tremeu, como se o próprio ar estivesse sendo rasgado.
— Então que comecem as guerras do renascimento. Veremos qual realidade merece viver.