24/05/2017 - Avenida Paulista, São Paulo
"Para restaurar a ordem, é necessário reconhecer a extensão do caos."
Dentro do blindado T-47, o ar pesava como um cobertor sujo, saturado com o cheiro ácido de óleo queimado e o ranço de vômito seco. O recruta Cabral, de 19 anos, encolhia-se no banco de metal, os dedos crispados no coldre da pistola, tentando não fixar os olhos na tela de monitoramento onde figuras escuras eram arrastadas por braços mecânicos, como bonecos desmontados em uma linha de abate.
— "Segura essa merda aí, cabaço", rosnou Sargento Lemos, atendia pelo apelido de 'Porco', arremessando um pano encharcado de graxa e sangue seco no colo do rapaz. O tecido grudou na perna do recruta, ainda quente de algum reparo feito horas antes. "Olha aqui, os vermelhos são Delta-22. Se vê um, ocê não atira. Só marca e chama o Capitão. Errou? Vai de berço junto com eles."
Na tela estática, rostos surgiam entre névoas digitais, cada um marcado com um X vermelho pulsante, exceto um. Um homem de barba grisalha, piscava em azul. Cabral engoliu seco e apontou:
— "E esse?"
Lemos deu um forte soco no painel, fazendo a tela oscilar por um momento. Por um instante, a imagem do homem distorceu-se em pixels grotescos, antes de retornar ao normal, a marcação azul agora piscando.
— "Bug do sistema", cuspiu Lemos, a razão do seu apelido, seus dentes manchados de tabaco brilhando no escuro. "Foca no que importa."
Do lado de fora, um grito. Lemos agarrou o rifle, cuspiu no chão novamente, saliva escura misturando-se com a poeira e óleo acumulados no assoalho.
— "Hora de trabalhar, garotos."
A Avenida Paulista cheirava à tensão. O asfalto, ainda úmido da chuva recente, refletia as luzes piscantes de celulares e holofotes distantes, enquanto faixas rasgadas balançavam entre postes como bandeiras de um protesto que já durava dias. Garrafas plásticas cheias de vinagre amontoadas nos cantos formavam barricadas improvisadas, seus tampões prontos para serem arrancados.
No meio do grupo organizado, Rafael, um estudante de medicina de jaleco manchado de tinta spray e suor, ajoelhou-se no chão, ensinando um grupo a dobrar filtros de café dentro de lenços umedecidos.
— "O gás vai queimar como fogo no rosto", ele avisou, a voz rouca de gritar, "mas não fechem os olhos. O pânico é pior que a dor. Se cegarem, vão pisar em vocês."
Ao seu lado, Luana, de lenço roxo amarrado no pescoço como um símbolo de resistência, distribuía colírios caseiros em frascos de perfume vazios, cada um etiquetado com caneta marcadora: — "Lave com leite se arder demais."
No fundo, alguém tocava "Cálice" num violão desafinado, as notas se perdendo no zumbido mecânico de drones policiais, quais sobrevoavam como abutres. O som era quase abafado.
Um garoto de quinze anos, Miguel, o mais novo do grupo, tremia ao acender seu primeiro molotov, as mãos suando tanto que o isqueiro escorregava.
— "Respira, Miguel", sussurrou Luana, ajeitando o capacete de bicicleta dele, já riscado de pedradas anteriores. "A gente só ataca se eles atacarem primeiro."
O ar estava impregnado de protetor solar barato, passado na pele como escudo contra água fervente, e do cheiro metálico de graxa, das correntes de bicicleta que alguns enrolavam nos punhos como armas. Ninguém comentava sobre o sangue já seco nas placas de trânsito arrancadas, nem sobre os sapatos abandonados no meio da rua.
A câmera acoplada ao capacete do Capitão Ferreira capturava cada passo firme de suas botas táticas contra o asfalto escaldante, a imagem tremendo com o impacto de sua marcha. O céu sobre a Avenida Paulista não era mais belo, estava sufocado por uma névoa espessa, uma mistura de gás lacrimogêneo, fumaça de pneus queimados e o calor opressivo do outono paulistano. O ar era denso, quase sólido, carregado com o cheiro ácido de vinagren usado pelos manifestantes para neutralizar os efeitos do gás, a picante fuligem da pólvora e o odor acre do suor.
À frente, a multidão era como uma entidade singular, um organismo pulsante de rebeldia barata. Rostos ocultos por lenços negros, máscaras de gás improvisadas, olhos ardendo de raiva e determinação. Mãos erguidas empunhavam coquetéis molotov caseiros, escudos feitos de madeira compensada, pedaços de metal arrancados de placas de rua. Os gritos roucos de slogans anti-estatais clichês.
— "Nenhum direito a menos! Nenhum direito a menos!"
Faixas tremulavam acima das cabeças, mensagens pintadas à mão com tinta vermelha: FORA TEMER, CONTRA A PEC 55, FIM DA PM.
Do outro lado da avenida, sob a sombra da marquise do antigo MASP, a Tropa de Choque se posicionava em formação de batalha, lembrando os antigos espartanos.
Os Caveirões Urbanos T-47, verdadeiros titãs de aço negro com blindagem térmica e jatos de água pressurizada aquecida a 80 graus, avançavam em marcha lenta, seus motores roncando. Sobre eles, a bandeira do Estado de São Paulo e o emblema do Batalhão da Tropa de Choque, uma caveira rachada com um elmo espartano, ondulavam ao vento.
Dentro do blindado central, Ferreira observava os dados em seu tablet reforçado. Mapas de calor mostravam os pontos de aglomeração, setores vermelhos onde a massa humana se concentrava. A operação dos manifestantes parecia ter sido planejada cirurgicamente.
Larissa Martins, 28 anos, Midia NINJA desde os 19, ajustou o celular às pressas dentro do falso livro, "A Arte da Guerra", capa surrada, páginas ocas escavadas a faca. Sua transmissão ao vivo tremeluzia para 47 mil espectadores, o chat disparando em frenesi.
— "São 14:47. A PM está posicionando os Caveirões na Consolação", sussurrou, a voz firme mas os olhos observando qualquer movimentação. "Temos dois feridos no beco ao lado, precisamos de—"
Um policial de óculos espelhados parou três metros à frente, o rosto intencionalmente inexpressivo, mas o corpo virado diretamente para ela. Ele sabia. Larissa fingiu tossir, curvou-se como se fosse cuspir no chão, e em um movimento fluido deslizou o celular para dentro do sutiã, onde outro aparelho já queimava sua pele sob o tecido. Sempre dois: um para filmar, um para despistar.
Atrás dela, a equipe da Globo recuava, as câmeras profissionais desligadas em sincronia, os repórteres de colete à prova de balas mordendo os lábios. Um segurança de crachá ilegível, nome borrado de tinta, foto desbotada, agarrou um jornalista independente pelo braço, os dedos afundando na carne.
— "Credencial."
— "Tá aqui, porr—"
O segurança arrancou a câmera das mãos dele e esmagou o equipamento no asfalto com o solado de sua bota, vidro e plástico estilhaçando-se como ossos. Larissa engoliu em seco. Seu polegar pausou a transmissão no mesmo instante em que o rosto do homem entrava em quadro.
Ela o reconheceu. Era o mesmo da foto de 2013, daquele protesto onde três jovens desapareceram sem deixar rastros.
Do outro lado, Capitão Ferreira ajustou o fone de comunicação embutido no capacete, sua voz saindo distorcida pelo filtro eletrônico:
— "Iniciar bloqueio. Flanco norte pela Frei Caneca. Equipe Delta, avancem pela Consolação. T-47, formar semicírculo. Ninguém entra, ninguém sai."
Uma pausa. Seus olhos escaneavam a tela, calculando.
— "Vamo encerrar essa merda toda em vinte minutos."
Do outro lado do rádio, a resposta imediata do Sargento Lemos, dentro do segundo Caveirão:
— "Entendido, senhor!"
O primeiro estouro rompeu o ar.
Uma granada de efeito moral foi lançada, antes de explodir no meio da multidão, o clarão branco iluminou por um instante os rostos em pânico, seguido pelo estrondo ensurdecedor que fez o chão tremer. O efeito, ensurdecedor. E então, o caos se instalou de vez.
[14:49]
O impacto da granada cortou o ar como um trovão seco. Manifestantes recuaram instintivamente, corpos colidindo uns contra os outros em um efeito dominó de pânico. Alguns caíram, atropelados pela debandada. A fumaça branca e espessa ergueu-se do asfalto, engolindo tudo em segundos, o sinal de que o conflito havia cruzado o ponto de não retorno.
No epicentro do caos, um menino magro destacava-se, vestindo uma máscara de gás soviética antiquada, provavelmente encontrada num lixão, vidro esverdeado embaçado pela respiração ofegante. As correias de couro ressecado marcavam seu rosto, mas ele não parecia incomodado. Na mão direita, segurava uma pedra lisa, mas não a arremessava. Apenas observava, imóvel, a linha de policiais a frente.
Cabral, no seu primeiro dia no Batalhão de Choque, sentiu o suor escorrer por dentro do capacete. Quando viu o perfil franzino que enfrentava por trás daquela máscara, baixou o escudo por um instante:
— "Porra Capitão, é uma criança!"
Ferreira, veterano de quatorze operações, ergueu a mão esquerda num gesto, sinal para avançar. Dois agentes em equipamento pesado agarraram o garoto pelos ombros com força.
A máscara desprendeu-se com um estalo, revelando um rosto surpreendentemente sereno: olhos castanhos calmos, um sorriso quase aliviado, como se tivesse esperado por aquele momento por muito tempo.
— "Vocês tão atrasados", o garoto riu, a voz clara cortando o barulho da tropa, antes de ser arremessado como um saco de batatas no interior do blindado.
No chão de asfalto, a máscara soviética jazia já rachada ao meio. A lente esverdeada refletia, distorcida, o rosto de Cabral, pálido, enojado consigo mesmo, em contraste com a máscara sendo esmagada por uma bota de combate.
Gritos desesperados se misturavam ao sibilar agudo das bombas de gás, que ricocheteavam no chão antes de explodir em nuvens tóxicas. Uma jovem de lenço vermelho amarrado no rosto agarrou a camisa preta de um companheiro caído, tentando arrastá-lo para trás das barricadas. Sangue escorria da têmpora dele, onde uma bala de borracha havia atingido com força suficiente para deixar um hematoma roxo e profundo.
— "Cuidado com o flanco! Eles tão vindo pela Augusta!" — alguém berrou entre tosses convulsivas, a voz rouca pela inalação do gás.
Ferreira saltou do Caveirão com movimentos precisos, suas botas batendo no asfalto com autoridade. Seu uniforme estava impecável, o peitoral rígido ostentando o emblema da Polícia Militar de São Paulo. Mas sob a placa balística, quase invisível, uma identificação codificada estava gravada a laser: MOTHRA-17A. Um código que não constava em nenhum registro oficial.
Ferreira pisou em algo macio. Um ursinho de pelúcia, metade queimado, encharcado de água e gasolina. Ele chutou o brinquedo para longe, mas não antes de ver a mancha marrom em seu pelo.
No rádio, uma respiração ofegante cortou o silêncio estático. Alguém sussurrou: — "Tem mais deles na Frei Caneca. Cuidado com os de máscara prateada."
Ferreira não precisava sacar a arma. Seu comando era a arma.
— "Ainda tem pra todo mundo, quem quiser pode vir!" — sua voz ecoou pelo megafone embutido no capacete, desafiadora. Um silêncio de milésimos de segundos, como se o ar tivesse parado.
Então, a ordem seguinte: — "Granadas de dispersão, sequência tripla. Avanço em pinça, agora!"
Ferreira ajustou o coldre enquanto o Caveirão avançava. Seus dedos tamborilaram, três batidas rápidas, contra o couro, um tique de quando ainda era um tenente no Capão Redondo. De repente, um flashback. Chuva ácida. O cheiro de pólvora e mijo em becos estreitos. Um adolescente de boné vermelho gritando algo cujo já havia esquecido. O estalo seco de um cassetete contra um osso.
— "Capitão?"
O sargento Lemos o chamou de volta. Ferreira piscou seu olhar frio, limpou a nuca suada. O adolescente do Capão nunca teve nome, mas agora, na Paulista, todos os rostos sob lenços pareciam o mesmo.
Ele olhou para as mãos. Nenhum sangue visível.
A Tropa de Choque marchou em união. Os cassetetes batiam contra os escudos anti-motim num ritmo de guerra. O som ecoava entre os prédios, tornando-se cada vez mais alto a medida que se aproximavam dos manifestantes.
— "XÔ!!!" — Gritaram todos em conjunto.
As botas pesadas levantavam poeira e destroços, pedaços de madeira queimada, garrafas quebradas, panfletos pisoteados. Um hidrante destruído pelos manifestantes jorrava água em jorros irregulares, transformando o chão num lamaçal onde dois corpos agora se debatiam, tentando se levantar.
— "Eu vi! Eles pegaram o Thiago!" — uma voz feminina gritou, rouca de pânico.
— "Cadê a imprensa? Filma isso, caralho!"
Um repórter de colete à prova de balas marcado com "IMPRENSA" em letras fluorescentes tentou levantar a câmera, as mãos trêmulas. A lente focou por um segundo nos policiais avançando, nos corpos caídos, na fumaça branca engolindo a avenida. Foi o suficiente.
Um jato d'água fervente atingiu-o em cheio no peito. O impacto o jogou para trás, a câmera espatifando-se no chão, a lente estilhaçada em cacos. Ele gritou, os olhos ardendo, a água quente quase o cegou por segundos.
Dois soldados o agarraram pelos braços, arrastando-o para a calçada como um fardo incômodo. Nenhum colega de imprensa interveio. Nenhum policial parou para ajudar. Ele ficou ali, encostado num poste, o rosto queimado, a respiração ofegante, enquanto o mundo desmoronava ao redor.
Vários Caminhões militares já haviam fechado o cerco, por ordem de Ferreira, querendo garantir que nenhum manifestante fugisse.
Na esquina com a Rua Bela Cintra, onde o asfalto já estava negro de fuligem e o ar cheirava a gasolina e queimado, um grupo do Black Bloc fazia sua última resistência. Eles haviam improvisado uma linha defensiva com cones de trânsito virados, lixo em chamas e pedaços de um ônibus destruído.
No centro do grupo, um rapaz magro, encapuzado, segurava um coquetel molotov com as mãos enluvadas. Seus olhos, visíveis por uma fenda no tecido preto, fixaram-se nos escudos do Choque como se sua própria morte fosse um sacrifício aceitável.
Ferreira parou a cinco metros dele. A fumaça rodopiava entre os dois.
— "Vai jogar?" — perguntou, calmo, quase indiferente.
O manifestante tremeu. O líquido dentro da garrafa balançou, perigosamente próximo ao pavio aceso.
— "Vai se foder, fascista!" — cuspiu, a voz rouca de ódio e adrenalina.
Ferreira não piscou os olhos.
— "Coragem é uma arma perigosa."
Um gesto mínimo, quase imperceptível.
O estampido veio de algum lugar atrás da linha de elite. Uma bala de borracha atingiu o braço do rapaz com força cirúrgica. O molotov caiu, estourou no chão e as chamas subiram instantaneamente, envolvendo sua perna em línguas de fogo. Ele gritou, um som agudo, animal, e caiu de joelhos, tentando apagar as chamas com as mãos. Seus companheiros recuaram, horrorizados.
Ferreira apenas observou.
[15:03]
A operação durou vinte e um minutos.
Cento e doze feridos. Quarenta e oito detidos. Quatro desaparecidos.
Enquanto a Tropa de Choque recolhia os últimos manifestantes, forçando-os a deitar-se com as mãos na nuca, rostos pressionados contra o asfalto ainda quente, Ferreira se afastou do tumulto. Seu dedo tocou o comunicador do rádio, ativando um canal seguro, frequência criptografada, fora dos registros oficiais.
— "Alvo neutralizado. Nenhuma manifestação anômala detectada até o momento." — sua voz era metálica, distante. Ele continuou. — "Requisito extração dos indivíduos marcados com código Delta-22. Prováveis candidatos ao protocolo de observação."
Do outro lado, uma resposta imediata, distorcida por um filtro digital:
— "Entendido, Capitão. O transporte está a caminho. Proceda com as marcações conforme protocolo 4-C."
Ferreira desligou.
Ele se abaixou ao lado de um dos detidos, um jovem de cabelo raspado, olhos vermelhos da fumaça, mas fixos, intensos. Diferente dos outros, ele não tremia. Não suplicava. Apenas sorriu para Ferreira, os dentes manchados de sangue.
— "Acha que venceu?" — o rapaz riu, baixo. — "Isso aqui não é nada. O que tá vindo... vocês não têm ideia."
Ferreira sorriu de volta.
— "E é por isso que você vem comigo, moleque."
Da manga do uniforme, ele tirou uma caneta comum, daquelas de escritório barato. Mas um clique sutil revelou sua verdadeira função, a ponta liberou um traço fluorescente invisível a olho nu, marcando a pele do rapaz com um código nanométrico. Uma assinatura que só seria lida sob luz ultravioleta. Rastreamento ativado.
O jovem nem percebeu.
No fim do dia, enquanto caminhões disfarçados da MOTHRA chegavam discretamente pela Rua da Consolação, Ferreira olhou para o céu. A fumaça começava a dissipar, revelando um sol baixo e alaranjado.
Algumas ruas adiante, as sirenes de ambulâncias e carros de reportagem ainda faziam barulho, tentando ainda entender o que havia acontecido.
Mas nós já sabíamos.