(Noite de 24/05/2017 – Estrada, rumo à Base Militar da MOTHRA, Bahia)
"Por sorte não há direitos humanos aqui em baixo."
Os motores a diesel dos caminhões MOTHRA T-72 eram silenciosos, suas vibrações ecoando através das paredes de aço reforçado e abafando os gemidos abafados dos prisioneiros amontoados nos compartimentos trereiros. Os veículos, pintados com uma tinta preta fosca que parecia absorver toda a luz ao invés de refleti-la, avançavam em formação cerrada pela rodovia deserta, escoltados por três blindados Lancer 4x4 sem nenhuma identificação oficial apenas um pequeno emblema de uma mariposa estilizada pintado nas portas.
Dentro do terceiro caminhão, Thiago Silva, 23 anos, estudante de história e um dos manifestantes capturados na Paulista, tentou sem sucesso ajustar seus pulsos contra as algemas zip-tie que cortavam sua circulação. Seus dedos formigavam, dormentes, e cada movimento fazia o plástico afundar mais em sua carne já. O cheiro metálico de sangue seco misturava-se ao suor azedo e ao vapor de gasolina que vazava de algum lugar no piso do veículo.
Ao seu lado, o garoto de cabelo raspado, o mesmo que havia sorrido para Ferreira com os dentes manchados de sangue, seus dentes estavam rachados, cortando o interior de sua boca, respirava de forma controlada, seus olhos vidrados fixos nas marcas de solda no chão metálico. Suas costas encostavam na parede do caminhão, sentindo cada solavanco da estrada de terra que haviam pegado há cerca de meia hora.
De repente, um som abafado veio da escuridão:
— "Pra onde porra a gente tá indo?" sussurrou uma voz rouca, provavelmente da jovem que haviam jogado no caminhão antes de Thiago.
Ninguém respondeu. O silêncio era interrompido apenas pelo ranger dos amortecedores e pelos gemidos ocasionais dos feridos. Os caminhões eram projetados para transporte de carga, humanos ou não, sem janelas, apenas com estreitas ranhuras de ventilação no teto por onde entrava ocasionalmente um fio de luar prateado.
Thiago tentou se apoiar melhor quando o caminhão balançou violentamente, passando por mais um buraco na estrada. Foi quando percebeu que o piso estava levemente úmido, não de água, mas de algo mais viscoso. Sangue. Sangue de alguém que não havia sobrevivido ao transporte.
De repente, o rádio na cabine do caminhão chiou, fazendo vários prisioneiros se encolherem. Uma voz distante, distorcida pela estática, ecoou na escuridão: — "Zulu-9, confirmando rota para Bravo-Alfa-20. ETA 03:00. Carga P-22 a P-31 estável. Over."
Uma resposta imediata veio, em um tom ainda mais distorcida: — "Copiado, Zulu-9. Mantenham protocolo de silêncio até o checkpoint Gamma. Over and out."
O garoto de cabelo raspado ergueu a cabeça pela primeira vez, seus olhos encontrando os de Thiago no escuro. Sem dizer nada, ele fez um movimento com a cabeça em direção à frente do caminhão, onde uma pequena luz vermelha piscava discretamente perto da porta, uma câmera. Eles estavam sendo observados.
Thiago fechou os olhos, sentindo o caminhão acelerar, levando-os para mais fundo no território desconhecido da Bahia. Em algum lugar à frente, o destino os aguardava, e ele suspeitava que poucos, se algum, voltariam para contar a história.
Quando as pesadas portas do caminhão se abriram com um rangido hidráulico, um jorro de luz branca quase cirúrgica invadiu o compartimento, cegando temporariamente os prisioneiros acostumados à escuridão. Vários recuaram instintivamente, esfregando os olhos com as mãos ainda algemadas, enquanto outros simplesmente ficaram paralisados, como animais diante dos holofotes de um matadouro.
Doze soldados em uniformes táticos cinza-escuro, com máscaras de gás MK-9 e capacetes operacionais sem nenhuma insígnia, formavam um cordão de isolamento. Seus movimentos eram precisos, mecânicos, enquanto puxavam os prisioneiros para fora um a um. As botas táticas esmagavam dedos desprotegidos sem hesitação.
— "Filas de cinco! Cabeças baixas! Nenhum piu!" Exclamou um comandante, sua voz ecoando pelo pátio de concreto. O soldado, armado com uma AK-47, usava uma balaclava preta sobreposta a óculos de visão noturna de vidro fumê - seus olhos completamente ocultos por lentes reflexivas que devolviam a imagem assustada dos prisioneiros.
O local revelado era uma farsa perfeita. O grupo foi conduzido à força para a entrada principal, onde um elevador industrial de carga esperava, suas portas de aço brilhando sob a luz artificial. Quando as portas se fecharam com um clique eletrônico, um display digital mostrou a próxima descida: NÍVEL -7: SETOR DE DESIGNAÇÃO CLASSE-P
O ar se tornava visivelmente mais frio a cada metro descido, até que a respiração dos prisioneiros formava pequenas nuvens de vapor. Alguns tremiam involuntariamente, fosse do frio ou de medo.
Ao chegarem ao nível mais profundo, as portas do elevador se abriram revelando um corredor infinito banhado em luz azulada antisséptica. As paredes eram revestidas por uma liga metálica não identificada, fria ao toque, com portas de aço reforçado espaçadas a cada dez metros. Algumas tinham pequenas vigias circulares; outras exibiam apenas códigos vermelhos piscantes:
"SETOR P / SUJEITOS DE RESISTÊNCIA - AUTORIZAÇÃO NÍVEL 5 REQUERIDA"
Um dos soldados se adiantou, seu capacete emitindo um leve zumbido eletrônico quando ativou o alto-falante interno:
— "Atenção. Vocês não estão presos", a voz distorcida ecoou pelo corredor, enquanto os prisioneiros eram empurrados para frente. "Vocês foram selecionados para a Instituição MOTHRA. Isto pode representar tanto uma oportunidade única quanto uma horrível condenação, dependendo exclusivamente da perspectiva individual de cada um, claro."
Entre os capturados, olhares perplexos se cruzaram. O garoto de cabelo raspado, agora com o lábio sangrando após um empurrão brutal, cuspiu sangue no chão, murmurando: — "Puta que pariu, caímos num filme de terror de quinta categoria..."
Nenhum dos soldados reagiu às palavras. Continuaram marchando em formação perfeita, suas botas batendo ao mesmo tempo no chão metálico, ecoando de maneira estranhamemte nostálgica. À medida que avançavam, alguns prisioneiros começaram a notar pequenos detalhes perturbadores, manchas escuras nas junções das paredes que não pareciam ser ferrugem, arranhões profundos no chão como se algo pesado tivesse sido arrastado à força, e um cheiro quase imperceptível de carne queimada misturado ao aroma artificial de desinfetante barato.
Enquanto isto, Capitão Ferreira avançava pelos corredores acima da instalação. O cheiro de antisséptico e óleo de máquina pesava no ar, misturado ao leve odor metálico de sangue recente que ainda grudava em suas luvas táticas. Ele puxou um lenço umedecido do bolso do uniforme, limpando os dedos metodicamente, como se tentasse apagar não apenas os resíduos físicos, mas também o peso moral de suas ações.
Ao se aproximar da Sala de Observação Principal, uma porta de vidro fumê automática deslizou para o lado suavemente, revelando um ambiente climatizado, iluminado apenas pelo brilho azulado de múltiplas telas de monitoramento. Três figuras impecavelmente vestidas em ternos escuros, cortes tão precisos que pareciam feitos para corpos que não suavam nem respiravam, as figuras era sobrenaturalmente altas, chegando quase ao teto da sala, e se curvando para conseguir observavar as cenas dos prisioneiros sendo escoltados. Suas mãos estavam cruzadas atrás das costas, mãos pálidas, finas e longas.
Ferreira entrou, e a porta se fechou atrás dele com um click.
— "Operação concluída", anunciou, jogando o lenço sujo em uma lixeira de aço inoxidável. "Doze Delta-22 identificados. Quatro com potencial para serem Sujeitos-P."
O homem no centro, cabelo grisalho cortado rente, olhos negros como poços de petróleo, sem branco, sem pupila, apenas escuridão líquida, virou-se lentamente. Seu rosto não expressava emoção, mas havia algo na maneira como seus dedos longos e pálidos se contraíram levemente que sugeria interesse.
— "E o garoto?" perguntou, a voz tão suave que quase se confundia com o zumbido dos equipamentos. "O que disse sobre ‘o que está vindo’?"
Ferreira sorriu, um gesto que não alcançou seus olhos.
— "Ele vai cooperar." O capitão ajustou o coldre da pistola, um movimento quase casual. "Todos cooperam, eventualmente. São apenas revolucionários de apartamento."
O homem de olhos negros estudou Ferreira por um longo momento, como se pudesse ver além da carne e do osso, até as intenções ocultas. Então, sem quebrar o contato visual, estendeu um dossiê preto com um selo branco, a logotipo da Instituição MOTHRA: "MOTHRA - NÍVEL 5 - EYES ONLY"
— "Você está dispensado por enquanto, senhor Ricardo Ferreira", disse, enfatizando o título civil como se lembrasse ao capitão que, ali, ele não era mais um militar. "Deixe que o Instituto cuide do resto. Se precisarmos de mais... intervenções, nós o chamaremos."
Ferreira pegou o dossiê, sentindo o peso anormal do material, mais pesado do que o papel comum, como se contivesse algo além de documentos.
— "E o diretor?" perguntou, fingindo desinteresse.
— "Quer resultados antes da próxima fase. Você sabe como ele é." O homem de terno virou-se novamente para as telas, onde imagens dos prisioneiros sendo submetidos a exames invasivos piscavam em sequência. "Nós sempre entregamos resultados."
Ferreira assentiu, mas antes de sair, seus olhos pousaram brevemente em uma das telas menores. Mostrava o garoto de cabelo raspado sendo conduzido a uma sala branca, onde uma equipe em trajes de isolamento aguardava com instrumentos cirúrgicos alinhados em uma bandeja de aço.
O capitão deixou a sala sem dizer nenhuma outra palavra.
Assim que a porta se fechou, o homem de olhos negros tocou um comando em seu painel. Nas telas, uma nova mensagem surgiu:
"PROTOCOLO P-22: INICIAR FASE DE CONDICIONAMENTO"
Enquanto isso, Ferreira caminhava pelo corredor, o dossiê sob o braço. Ele parou diante de um espelho de vigilância embutido na parede, um daqueles que parecem apenas refletores, mas que na verdade escondem câmeras. Por um instante, ele encarou seu próprio reflexo, os olhos frios, a postura impecável.
Então, num gesto simples, arrancou um pequeno dispositivo de gravação do forro de seu colarinho e o esmagou sob a sola da bota.
O soldado arrastou Thiago pelo corredor estreito. A cela era um cubículo de três metros quadrados, paredes revestidas por uma espuma cinza densa, à prova de gritos. A porta de metal enferrujado rangiu ao ser aberta.
— "Tira a roupa." O guarda ordenou, apontando para o chão, onde um uniforme azul já estava dobrado.
Thiago recuou até encostar na parede fria. "O quê? Nem fodendo!" Seus dedos se cerraram involuntariamente nas costuras da camisa suja de sangue. "Com você olhando não!"
O soldado inclinou-se para frente. O visor espelhado do capacete refletiu o rosto machucado e com medo de Thiago.
— "Eu posso fazer bem mais do que apenas olhar." A mão engantada deslizou para o cinto.
Todos foram empurrados para cámaras cilíndricas de aço. Quando as portas selaram, jatos de um líquido azulado a 4°C explodiram de todas as direções. O fluido queimava como álcool em ferida aberta, removendo qualquer traço de sujeira. Alguns gritaram. Thiago engoliu o grito.
Momentos após, uma mulher de jaleco branco, sem nome no crachá. Apenas um código: DR-37. Seus movimentos eram ágeis, ela já estava habituada com aquilo, definitivamente. Girou um marcador de gado industrial entre os dedos enluvados. O dispositivo lembrava uma pistola de solda, com um reservatório cheio de tinta nanotecnológica.
— "Isso vai doer menos se você ficar quieto."
O contato no ombro de Thiago produziu um estalo úmido, seguido pelo cheiro acre de carne carbonizada. Quando retirou o aparelho, os números P-022 brilhavam em vermelho fosforescente antes de se fixarem num preto pálido. A tinta se fundia com as camadas subdérmicas, permanente.
Através da espessa janela de vidro à prova de balas, o garoto de cabelo raspado estava preso a uma cadeira odontológica modificada, seu corpo imobilizado por cintas de couro reforçado com fibras metálicas. Suas pupilas, dilatadas pelo pânico, refletiam as luzes cirúrgicas fluorescentes que pendiam do teto.
Dois técnicos de macacão branco mantinham sua cabeça fixa. Um deles, um homem de sobrancelhas tão claras que quase desapareciam, usava um aparelho de contenção craniana, uma espécie de arco de metal que prendia a mandíbula do garoto aberta, evitando gritos. O outro, uma mulher com luvas de látex azul, monitorava os sinais vitais em um tablet que emitia alertas vermelhos a cada pico de adrenalina.
No centro, o cirurgião, cantarolava Asa Branca" enquanto preparava seus instrumentos. Seu jaleco estava um pouco sujo de sangue, contrastando com as manchas marrons nos punhos, resíduos de procedimentos anteriores. Ele ajustou os óculos de aumento, lentes que ampliavam seus olhos como os de um inseto, e pegou uma grande agulha de costura de tungstênio, fina como um fio de cabelo.
— "Olho direito primeiro, como sempre", anunciou, como se estivesse falando para um público invisível. "Vamos ver o que você esconde aí dentro, seu pequeno rebelde."
A agulha penetrou a córnea com um som úmido. P-020 arqueou as costas, um grito abafado pela contenção bucal. Seu olho esquerdo rodou descontroladamente, tentando em vão fugir da visão do instrumento que lentamente perfurava seu globo ocular, atravessando a proteção vítrea até encontrar resistência e por si, o osso frontal.
— "Ah, lá estamos nós", o cirurgião murmurou, inclinando-se para ver melhor. A agulha agora atravessava o córtex pré-frontal, buscando algo específico. "Todo mundo tem uma caixinha de segredos aqui dentro. Vamos abrir a sua, querido?"
P-020 não podia responder. Sua mão direita, a única não contida? contorcia-se em espasmos, dedos arranhando o couro da cadeira até sangrar. No monitor, uma nova forma de onda surgiu.
Os macacões azuis a ser distribuídos eram feitos de um tecido inteligente que coçava constantemente. Sem bolsos. Sem cordões. Costuras reforçadas para evitar suicídios. O número no peito de cada prisioneiro.
Uma voz feminina sintética falou dos alto-falantes.
— "Bem-vindos a Instituição MOTHRA. O descanso é obrigatório. A resistência é punível. Vocês serão transferidos amanhã a partir das 06:00."
Quando as luzes se apagaram, Thiago descobriu que no escuro, os números no peito brilhavam mais forte sempre que alguém chorava.
E no corredor, os passos dos guardas não paravam. Nunca paravam.
[Apartamento da Larissa Martins - Vila Madalena, São Paulo]
[03h47 da manhã - 24 horas após o protesto]
A tela da TV de 32 polegadas piscava no escuro, projetando flashes azulados sobre o rosto cansado de Larissa. Ela estava encolhida no sofá, envolta em um cobertor manchado de café frio, os dedos inquietos passando e repassando pelo play de um vídeo no seu laptop.
Na TV, um repórter de terninho padrão falava com aquela voz suave que só usam quando querem acalmar o público:
— "O governo afirma que todos os detidos durante os protestos já foram liberados após prestarem depoimento. A Polícia Militar nega veementemente alegações de violação de direitos humanos..."
Larissa deu um mute na TV com um gesto brusco. Ela já tinha ouvido essa mentira dez vezes nas últimas horas. Seus olhos voltaram para a tela do laptop, onde o vídeo que ela mesma tinha filmado na Paulista rodava em loop: Imagem tremida. Gritos. O segurança de crachá ilegível esmagando a câmera do colega jornalista.
E depois... aquela parte.
Ela deu pause no frame exato onde o rosto do segurança aparecia em close. A cicatriz acima da sobrancelha. O queixo quadrado. Era ele. O mesmo homem da foto de 2013, quando três estudantes desapareceram após um protesto contra o aumento das passagens.
— "Cadê vocês agora?" — Larissa sussurrou para a tela, como se os desaparecidos pudessem ouvi-la. E então, um flashback de oito horas atrás.
Larissa tinha ido até a delegacia mais próxima, fingindo ser uma prima de um dos desaparecidos. O atendente, um homem com olheiras profundas, mal tinha olhado para ela: — "Se num tem boletim de ocorrência, num tem desaparecido. Próximo."
E quando ela insistiu, mostrando fotos no celular, ele baixou a voz: — "Moça, vai pra casa. Esses daí num voltam mais."
Na TV sem som, agora passavam imagens do governador sorrindo em algum evento beneficente. Larissa pegou o controle e desligou o aparelho com um clique agressivo.
Ela se levantou e foi até a parede do seu pequeno escritório, onde fotos, recortes de jornal e fios vermelhos formavam uma teia de conexões malucas. No centro, uma foto impressa do Caveirão T-47, com uma anotação rabiscada ao lado. Seus dedos tremeram ao pegar um post-it novo. Ela escreveu: "Garoto de cabelo raspado - NÃO ENCONTRADO"
E colou ao lado da foto do segurança, completando a trilha.
Fora da janela, um carro parou devagar na rua deserta. Larissa congelou. Não era um carro de polícia. Era peto, fumê, sem placas.
O play do laptop começou sozinho, repetindo o grito do seu vídeo: — "Tá aqui, porr—" ESTÁTICA. Quando ela olhou de volta para a rua, o carro tinha ido embora.
Um alarme agudo rasgou o silêncio, seguido por uma voz robótica que ecoou pelos alto-falantes ocultos no teto:
— "ATENÇÃO, SUJEITOS-P. LEVANTAR. ALINHAR-SE. AGUARDAR INSPEÇÃO."
As luzes brancas de LED se acenderam de uma vez, como um soco nos olhos. Thiago (P-022) acordou com um sobressalto, o corpo dolorido do chão de concreto gelado. Seu uniforme azul estava úmido — suor ou condensação, ele não sabia.
Ao redor, os outros prisioneiros se arrastavam para ficar em pé.
- P-019: Uma mulher de cabelos curtos e queimaduras químicas nas mãos, ex-estudante de química. Respiração ofegante. Lorraine.
- P-020: Ausente. A cela estava vazia, apenas uma mancha escura no chão onde ele deveria estar.
- P-021: Um homem musculoso, ex-segurança, com os nós dos dedos esmagados. Olhos fixos no chão. Alexandre.
- P-023: Jovem magro, rosto marcado por hematomas recentes. Tremia incontrolavelmente. Oliver.
- P-024: Mulher mais velha, cabelos grisalhos. Movimentos lentos, calculados. Algo em seus olhos dizia que ela já tinha visto coisas piores. Ancélia.
A porta do alojamento se abriu. Dois guardas com uniformes táticos e máscaras de gás entraram, carregando scanners manuais.
— "Chamada final antes do transporte", um deles anunciou, voz distorcida.
O scanner emitiu um bip ao passar sobre o código de cada prisioneiro. Quando chegou na cama vazia de P-020, houve uma pausa. Os guardas trocaram olhares rapidamente.
— "Sujeito P-020 removido para procedimentos avançados. Continuem."
Ninguém ousou perguntar qualquer coisa naquele momento, apenas engolindo em seco.
Eles foram levados para um pátio subterrâneo, onde um caminhão preto aguardava, motor roncando. Desta vez, não havia ranhuras de ventilação. Atrás das grades, dava para ver que o interior havia sido modificado, assentos de aço, algemas fixas no chão.
Antes que pudessem reagir, sacos de pano preto foram enfiados em suas cabeças. O tecido cheirava a produtos químicos. Thiago sentiu o mundo girar por um segundo — algum tipo de sedativo no material?
Alguém (P-023) começou a gritar. Um tapa seco, seguido de um gemido abafado.
— "Entrem. Agora."
Empurrados, os prisioneiros tropeçaram na rampa do caminhão. Algumas vozes sussurravam no escuro:
— "Onde ele está? O que fizeram com ele?" (P-019)
— "Cala a boca, eles tão ouvindo." (P-024)
A porta traseira foi fechada com um BAF! metálico.
O motor acelerou. O veículo começou a se mover, mas não havia como saber a direção, o caminhão não balançava, como se estivesse em uma estrada perfeitamente lisa. Ou talvez subterrânea.
Thiago tentou contar o tempo. Um minuto. Dois. Três.
Então, o caminhão fez uma curva fechada, e ele ouviu algo que não esperava:
O som de água.
Muita água. Como se estivessem passando por uma barragem subterrânea, oou talvez... um rio artificial sob a terra.
P-024 murmurou no escuro, tão baixo que quase não dava para ouvir. E então, o caminhão começou a descer.
[Viaduto do Chá, São Paulo - 06h23 da manhã]
A neblina da madrugada grudava na pele como um lenço umedecido. Larissa caminhava rápido, o capuz do casaco erguido contra o frio e as câmeras de vigilância. Na mão, sacolas térmicas com café e sanduíches, isca clássica para quem queria informações de quem realmente via tudo na cidade.
Ela o encontrou encolhido sob uma pilha de cobertores surrados, entre duas colunas do viaduto. "Seu Nelsinho", como era conhecido ali, era uma lenda urbana: ex-motorista de caminhão que perdera a família num acidente e agora vivia entre as sombras da cidade, mas com uma memória afiada como gilete.
— "Tá cedo até pros ratos, moça", ele tossiu, aceitando o café com dedos deformados pela artrite. "O que te traz pra minha sala de visitas?"
Larissa se agachou, mantendo a voz baixa: — "Os protestos de ontem. Você tava aqui?"
Os olhos dele estreitaram. Ele cheirou o ar como um animal farejando perigo. — "Tava. E vi o que não devia."
Ele descreveu os caminhões pretos estacionados atrás do antigo prédio. Homens de uniformes sem insígnias carregando pessoas algemadas e com capuz: — "Um dos moleques conseguiu fugir. Correu pra minha direção. Sangrando, com a camisa rasgada... Aí um dos soldados mirou uma arma esquisita, tipo... feita de vidro e—"
Seu Nelsinho congelou no meio da frase. Seus olhos fixaram em algo atrás de Larissa. — "Eles tão aqui."
Larissa virou. Nada. Apenas a névoa e o amanhecer sujo da cidade. Quando olhou de volta, Seu Nelsinho já estava em pé, os cobertores caídos no chão. Seu café intacto, derramando na calçada. — "Nelsinho?!"
Ele não respondeu. Andou em linha reta para o meio da rua vazia, como se estivesse em transe: — "CORRE!" Ele gritou de repente, sem olhar para trás. "ELES TÃO AQUI—"
Um caminhão de lixo preto passou entre eles com um ronco abafado. Quando o veículo passou, Seu Nelsinho tinha desaparecido.
No chão, apenas seus sapatos velhos, arrumados lado a lado. E uma mancha úmida que cheirava a amônia e cobre, o mesmo cheiro que Larissa lembrava da Paulista.
Seu celular vibrou. Mensagem anônima de um número desconhecido:
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